maio 31, 2005
Da alma dos gatos
há um verde de sabedoria intensa
que atravessa penumbras do meu espaço
através do olhar da minha gata
- que não é minha
pois só ela se possui –
e que tem essa imensa sabedoria
tão própria da circunstância biológica de se ser gato
sabe tudo o que sabe
sabe tudo o que é preciso saber
sabe ver o deslumbramento da escuridão nocturna
pelo brilho das estrelas
e devolve-nos esse olhar cheio de condescendências
deve ser bom ser-se gato
ter-se o mundo ao alcance da pata
e quando não
um simples salto basta para alcançar o mundo
deve ser bom ser-se gato
olhar e ver através de um mutável olhar todo verde
a ironia ou o desencanto a escoarem-se pela ponta da cauda
sem permanecerem viciosas por baixo da pelagem
ronronar sempre que nos apetecer
e
ainda assim
permanecer sempre gato
inexorável e intransigentemente gato.
- Poema e foto de Jorge Castro
maio 27, 2005
A esperança, os canhões e a lusitanidade
... pois, pois...parece-me que ainda não é desta que se verá a luz ao fundo do túnel...
e lá vamos outra vez contra os canhões
contra as tangas os burlões e tudo a sete
esgravatando em magra bolsa pelos cordões
onde dorme o triste pó e a
cotonette
sai imposto e mais imposto à tripa forra
aldrabice já lá vem bem mais de um cento
faz pensar que ir parar a uma masmorra
será mal menor e traz-nos mais sustento
entretanto é trabalhar ó vilanagem
quanto mais velho melhor com mais afinco
e p’ra melhor sustentar a gandulagem
sendo pouco os sessenta vão mais cinco
vê lá tu meu teso que não dobraste
a cerviz por não seres um vil lacaio
hás-de curvar-te agora quanto baste
pela força dos bicos de papagaio
e – cautela! – não vás por aí finar-te
num escritório ou atracado a algum torno
que o estado à família há-de cobrar-te
p’la armazenagem do teu corpo algum estorno
pois não pára a fuçanga desmedida
desta troupe que nos condena à dieta
que não medra em ponta de obra conhecida
mas que aldraba tanto tolo c’o esta treta
e vogamos pasmando espapaçados
neste lodaçal de petas e cinismos
futebol p’ra domingos bem passados
… pouco falta p’ra nos darem catecismos
já que sobram futebóis e muitos fados
tiazinhas de viver parvo e medonho
abastança de dinheiros emprestados
para comprar e vender até o sonho
mas enfim… p'ra animar um pouco a tropa
ainda não somos a cauda do planeta
e havemos de chegar a essa Europa
nem que seja a rastejar e sem ter cheta
- Jorge Castro
maio 25, 2005
porque é que isto não tem graça nenhuma?...
Recebida no meu email, esta mensagem não contribuiu nem um bocadinho para combater o estado pré-agónico em que me encontro, à espera de saber das últimas novidades do nosso bem-amado Sócrates para combater o déficit e que se adivinham já todas velhas...
Ser português é:
- Levar arroz de frango para a praia.
- Guardar aquelas cuecas velhas para polir o carro.
- Ter tido a última grande vitória militar em 1385.
- Guiar como um maníaco e ninguém se importar com isso.
- Levar a vida mais relaxada da Europa, mesmo sendo os últimos em todas as listas.
- Ter sempre marisco, tabaco e álcool a preços de saldo.
- Receber visitas e ir logo mostrar a casa toda.
- Pôr os máximos para avisar os outros condutores da polícia adiante.
- Ter o resto do mundo a pensar que Portugal é uma província espanhola.
- Exigir que lhe chamem "Doutor" mesmo sendo um Zé Ninguém.
- Passar o domingo no "shopping".
- Tirar a cera dos ouvidos com a chave do carro ou com a tampa da esferográfica.
- Axaxinar o Portuguex ao eskrever.
- Ir à aldeia todos os fins-de-semana visitar os pais ou avós.
- Gravar os "donos da bola".
- Ter diariamente pelo menos 8 telenovelas brasileiras na tv.
- Já ter "ido à bruxa".
- Filhos baptizados e de catecismo na mão mas nunca por os pés na igreja.
- Ir de carro para todo o lado, aconteça o que acontecer.
- Ter evacuado as Amoreiras no 11 de Setembro 2001.
- Viver mal e dizer que o governo que temos é bom.
- Graças a Deus, não ser espanhol.
- Lavar o carro na fonte ao domingo.
- Não ser racista, mas abrir uma excepção com os ciganos.
- Levar com as piadas dos brasileiros, mas só saber fazer piadas dos alentejanos.
- Ainda ter uma mãe ou avó que se veste de luto.
- Viver em casa dos pais até aos 30 anos.
- Acender o cigarro a qualquer hora e em qualquer lugar sem quaisquer preocupações.
- Ter bigode e ser baixinho(a).
- Conduzir sempre pela faixa da esquerda.
- Ter três telemóveis.
- Jurar não comprar azeite Espanhol nem morto, apesar da maioria do azeite vendido em Portugal ser espanhol.
- Deixar a telenovela a gravar.
- Organizar jogos de futebol entre solteiros e casados.
- Ir à bola, comprar "prà geral" e saltar "prà central".
- Gastar uma fortuna no telemóvel mas pensar duas vezes antes de ir ao dentista.
- Super-bock, tremoços, caracóis e marisco.
- Ser capaz de cometer 3 infrações ao código da estrada em 5 segundos.
- Graças a Deus, não ser brasileiro.
- Algarve em Agosto.
- Ir passear de carro ao domingo para a avenida principal.
- Dizer "prontos" no fim de cada frase.
maio 20, 2005
Crónica de Estranho E Mal Fazer
certo dia num sobredo uma bolota traquinas
danadinha p’rò folguedo entre as bolotas meninas
por força de caganita que um melro depositara
ao volejar sobre a dita bolota que se agitara
deu por si num alvoroço caindo desamparada
lá do alto da galhada no toutiço de um moço
que dengoso ali passava
e o moço mal encarado
- que ao humor nunca fiava -
pô-lo a bolota assustado no imprevisto da queda
descuidada no pexote
fica o mancebo danado com a mancha sem Quixote
e na pança o fidalgote leva um Sancho ataviado
assustado e vingativo
suja a camisa de seda
borrado o seu porte altivo
ali jurou o magano mal chegasse a executivo
cumprir um rijo plano contra o sobreiro inimigo
e que plano era esse que tal cabeça albergou?
ora desse por onde desse
de serra em punho e machado
malas-artes que inventou
mal algum sobreiro visse ao chão seria lançado
num piscar de olho e trejeito
e muito padrinho ao lado
ei-lo já feito bancário
sobreiros derruba a eito a cumprir o desidério
dando-lhe cores de cruzada
torpes razões de mistério
arranca – rasga - trucida
tudo desmata o experto
faz da terra assim despida antecâmara do deserto
do deserto ou do inferno
que há já p’r’aí quem duvide deste mau feitio eterno
e vê-lo infrene em tal lide
sanha tal em que se engolfa
lá diga à boca pequena
que ele quer é campos de golfe
roubando à terra morena a verdura do arvoredo
p’ra gáudio só do turista
deixando à malta pequena alguns grãozitos de alpista
segue pois deficitário o povinho no pagode
nas mãos de algum salafrário
que come mais do que pode
que pode mais do que deve
que deve… ah quanto deve!...
jamais se lhe acaba o rol
e ele é campos de golfe e campos de futebol
para isso é um mar de água
só o campo morre à sede
sobra a fome… sobra a mágoa
e no entanto olhai – vede
como ele medra e prospera
o grande artista sem rede a trepar à estratosfera
enquanto minga o portuga entre golfe e futebóis
com tanta relva trânsfuga
lá petisca uns caracóis
entalado na fartura do viver sem estribeira
ficou mole a dita dura
encrespado o mar da asneira
e há tanto médico à cura deste mal de pasmaceira
que há-de ‘inda morrer da cura
este povo que premeia o viver à lei da selva
e ruminante toupeira que de verde só tem relva
p’r’além do verde só mato
mal a esperança mora em Huelva
há que dar corda ao sapato
mas… luz se faz no horizonte
ao céu se abre o olhar mais puro que a pura fonte
‘inda mais leve que o ar
vem um constâncio que prega - que praga! –
contra a tormenta dos tempos de cegarrega
- que a malta já nem aguenta!... -
contra ventos e ordenados
aumentos e outros dinheiros
nos campos abandonados há que plantar sobreiros
que preciso é cuidar bem
com carinho e com justiça
do pouco que o povo tem...
e pô-lo a comer cortiça!
- Jorge Castro
maio 18, 2005
Rimanço do bobo sobre o Pedro e a Inês
(não esquecer que este é o ano inesiano e - vá lá saber-se - ainda descubro que tenho ali uma prima...)
entra o bobo num rompante
e alucinante grita o entremez
truão e tonitruante
sape-gato pronto
nem sei que te fez:
da Inês
coitada de amante
coração de pomba e era uma vez
do Pedro
coração de pedra mas de paixão cega
pela sua Inês
e um mais um não são dois
já que mais depois
se fizeram três
logo esse tal Dom Afonso
a fazer de sonso
meteu o nariz
naquele amor tão carnal
et coetra e tal
que matou por três
quando de punhal fatal
e tão desigual
matou D. Inês
fez-se no simples instante
o D. Pedro infante
rei cru e infeliz
desvaira
e doido varrido de tão desvalido
dá caça à má rês
e quando lhes deitou a mão
querem lá saber o que é que lhes fez?
numa fúria delirante
arrancou pela frente e outro por trás
os corações gelados
a dois dos malvados
foi zás-catrapás!
no fim
asinha-asinha
à Inês já morta
coroou rainha...
o quê? e tu não gostaste?
nem te entusiamaste?
nem tu? nem tu? nem tu?...
vê lá se queres que eu ainda
vá fazer queixinhas
ao D. Pedro
o cru.
sai o bobo em cambalhota
e a sua perna torta
fica para trás
a dizer adeus à malta
e o Pedro na escolta
leva a Inês atrás...
- Jorge Castro
maio 16, 2005
Abecedema
(sem K, nem Y, nem W… sem sentido consentido)
ah andasse antes aleatóriamente
brandindo brancos belos baluartes
com cautos cuidados claros cantantes
donde deuses demónios demais deidades descem
estremes enxames em estímulo exangue
faunos famintos flácidos fátuos
garantindo gozos golpeando galopes
harmonizando hoje halos havidos
intensos íntimos ilesos istmos
jamais jucundos justos jurados
louco lamento lancinante laço
mais melancólico mas meu melaço
normativas nuvens nadando nos ninhos
onde os orvalhos ora orgulhosos
poisam plácidos por puro prazer
quando quimeras querem quebrar
raios relapsos reles ressentidos
súbito sós sempre sedentos
tantos tamanhos tão turbulentos
úbere uno unido umbigo
vazio vale velante viço
xamã xifoide xisto xilógrafo
zona zoética zízio zunido.
- Jorge Castro
maio 14, 2005
Publicidade (recebida por email)...
dos bancos, dos banquetes e das bancadas:
- Preciso mandar abaixo 2000 sobreiros...- Já falaste com o teu partido?- Não... Falei com o teu banco! receita do medo:
O dono da farmácia entra na farmácia e vê um cliente apoiado com toda a força contra a parede.
- O que é que se passa com aquele homem? - pergunta ao assistente.
- Bem - responde o assistente. - Ele veio cá esta manhã pedir qualquer coisa para a tosse. Não consegui encontrar o xarope da tosse, por isso dei-lhe um frasco de laxante.
- Não se pode tratar a tosse com laxantes! - diz o farmacêutico, entredentes.
- Pode, sim. Agora ele tem medo de tossir.
maio 12, 2005
a sombra como um voo
a sombra da pomba na parede do prédio
como um voo agreste de açor clandestino
a sombra da pomba é um rasto um assédio
como um voo planado por sobre o destino
a sombra da pomba é um mal sem remédio
como um voo sem asas de sonho menino
a sombra da pomba é o salto intermédio
como um voo urbano sem rumo sem tino
a sombra da pomba é a sombra da sombra
sem um prédio um assédio um remédio ou sem tino
como um voo intermédio entre o sonho e o destino.
- de Jorge Castro
... e das paredes urbanas soltou-se um eco, de um companheiro de poesias, que vem a propósito:
A sombra que ensombra a parede do prédio
não mais faz que sombra mas não é assédio
que a sombra que pesa quando é prepotente
e não vem de luz mas nasce de gente
é a força mais forte de ser violência
num nojo de abuso demente sem pejo
que a própria demência esconde ao desejo
do egocentrismo sem conta nem pejo
e fere mais fundo que a ferida maior
não é deste mundo, é apenas dor
de nos violarem até ao tutano
com requintes ébrios de mau predador
que não é urbano, é verme menor
que não é humano, é bosta e bolor
que saiu do estrume e ao estrume regressa
rezai com fervor: que o faça depressa!…
e então, finalmente,
que não se disfarce, não finja ser gente
e o mundo lhe dê o quanto merecer:
uma cova calcada de terra pesada,
seu nome gravado cá em cima, “Estupor”,
e o letreiro podre “Que descanse em dor”!
- de Pedro Laranjeira
maio 11, 2005
Inquietação primaveril de um "trabalhador por conta de outrém"
Hoje venho para aqui colocar uma simples questão que me atormenta desde que me conheço como elemento da população activa deste país e para a qual sempre e por toda a gente me foi iludida a resposta. E ela é:
- Porque é que os sindicatos portugueses – todos, sem excepção! – discutem, ano após ano, com essas inefáveis entidades patronais a que temos direito, os aumentos salariais em base percentual?
Haverá por aí algum economista que me elucide, que me esclareça, acerca desta misteriosa fatalidade histórica que tanto agrava, também ano após ano, os fossos salariais, abissal fonte geradora de injustiça social e sem paralelo na Europa (… pelo menos, da que vou conhecendo)?
Sabem como são as contas feitas: o que ganha 10, com um aumento de 10%, passa a ganhar 11; o que ganha 100, com o “mesmo” aumento, passa a ganhar 110. Esta diferença de 9, reiteradamente agravada durante anos a fio, trouxe-nos à magnífica situação em que estamos: os piores nas remunerações mais baixas; os maiores nas remunerações mais altas.
Para quando a discussão partindo do aumento da massa salarial previsível, com uma distribuição mais equânime, que sem descurar responsabilidades, competências e eficácias, ainda assim “alise” as disparidades escandalosas , injustificadas e inqualificáveis que hoje se verificam?
Tratar-se-á de alguma coisa do foro do direito divino ou, afinal, não passamos de um rebanho de cordeiros parvos, imbecis e pachorrentos pastoreados por uma mão cheia de mafiosos atrevidos… Ou dar-se-á, apenas, o caso de ser só eu que não percebo nada disto?
maio 08, 2005
de Hélder Costa - "O Saudoso Tempo Do Fascismo" (ed. Parvoíces - parvoices@sapo.pt)
De viagem até Coimbra, em confraria sindical, aproveitei o tempo de moleza do autocarro para ler, de cabo a rabo, O SAUDOSO TEMPO DO FASCISMO.
Porque o exercício é recordatório, mais do que literário, a leitura fluiu sem tropeções, evocativa de vidas e percursos tão próximos e conhecidos - de os viver ou deles ouvir falar - que mal apercebi a viagem.
Tinha rematado a leitura de outro livro, PORTUGAL HOJE - O MEDO DE EXISTIR, de José Gil, e, sem qualquer esforço, estabeleci uma unidade de sentido entre as duas obras, ao provável arrepio dos seus autores, mas que me pareceu mais do que razoável a mim, leitor. Quase assim como dois lados de uma pirâmide quadrangular onde, pelas faces sobejantes, iam passando os autores e eu próprio.
O vértice é a vida, toda ela, feita dessas faces que se tocam, laterais, e que culminam nesse ponto de encontro apontado ao infinito.
Hélder Costa pinta com as cores do humor e da ironia os tempos da "negra ditadura fascista", como convém, destapando-lhe a careca ridícula e pontapeando-lhe o traseiro em saudável exorcismo contra o medo que nos oprime, aquele de que o José Gil nos fala, denuncia e desmascara.
Pois é... que bem sabe, de vez em quando, respirar uma lufada de ar fresco!
maio 05, 2005
de David Mourão-Ferreira - "Ilha"
Deitada és uma ilha E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente
promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente
Deitada és uma ilha Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro
ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias
fotos de Jorge Castro, no Parque dos Poetas - Oeiras
maio 02, 2005
Maio Maduro Maio...
Foto de Jorge Castro, Caldas da Rainha, "Lembrar José Afonso", em 30 de Abril de 2005Há quanto tempo não entrava na roda!... Ainda para mais a dançar a Grândola!
Entretanto, por Alpiarça, o escultor Armando Ferreira achou por bem e em boa hora, produzir uma monumental metáfora às vinhas (e, porventura, às idas, também...) prantando em pleno centro da vila quatro metros de estatuária que batizou de "A Melhor Casta".
Ao povoléu que tem andado num desatino, recomenda-se calma e abertura de espírito, que esta vida são dois dias e o ex-libris há-de levar muita gente à urbe. Ei-la, pela rectaguarda do seu esplendor e beatificamente enquadrada:
Foto de Pedro Laranjeira
E a mim até me ocorre dizer:
ó Alpiarça serena padroeira de consolos
aos tolos fazes pirraça co'a menina dos teus olhos
que tão bem fica e te assenta a metáfora das vinhas
não enjeites o que encanta casta sem ervas daninhas
Alpiarça tem sua graça sorrir-te a Mãe Natureza
que os seios da tua casta lembram ninhos de andorinha
e os sinos ao repicarem cá por mim tenho a certeza
soarão bem mais alegres com tal casta à sobremesa...
O que nos traz à colação que, ainda estando já em Maio,
viva o 25 de Abril, SEMPRE!
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